sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Amor cachorro


E lá vem ela! Livre, solta, correndo contra o vento, quando, de repente, o encontra. Ele acabara de sair do chuveiro e estava a passeio pela pracinha, apenas para exercitar-se, sem a menor pretensão de encontrar alguém. Mas, enfim, encontrou Cristal, jovem clara, delicada e sensual, olhos pretos e brilhantes, lábios vermelhos e sedosos, capazes de refletir a luz. Ele se chamava Sheick, um moreno chocolate glamoroso e vaidoso, cheio de charme. Tinha cabelos rebeldes, como a maioria dos jovens.
Sem expressar uma só palavra, aproximam-se e fitam-se nos olhos. É amor à primeira vista. Um amor tão intenso que ali mesmo, sem a menor cerimônia, começam a rolar na grama. Correm, pulam sobre os bancos da praça. Roçam seus corpos viçosos e sedentos.
Soraya fita-os e pensa: "Como são felizes!"
Bruna olha e diz:
- Nunca vi Cristal tão alegre assim!
Eles combinam que a partir deste instante, este será o local de seus encontros e começam a planejar um futuro feliz, com casa, filhos, enfim, tudo o que um casal apaixonado pode imaginar.
Eis que de repente se ouve o grito de Soraya:
- Vem, Sheick! Ah, cachorro danado, acabei de banhá-lo e olha só como está!
- Vem, Cristal! - chama Bruna.
E cada um volta para sua coleira e sai cabisbaixo, olhando-se mutuamente. Mas, antes de partirem, eles combinam um próximo encontro, a sós, durante a noite, quando poderão ficar à vontade. Após varias tentativas, conseguem se encontrar novamente na pracinha do condominio. Agora livre para viverem aquele intenso amor.
Desse amor repentino, nascem Cornellius e Gauss.
E então chega o dia em que Sheick vai morar em outro bairro, Cornellius parte para morar com Nilda, Gauss vai fazer companhia a Dolores. E a pobre Cristal fica amargando a solidão, revivendo em seus pensamentos, um feliz amor cachorro.

sábado, 6 de setembro de 2008

Minha genealogia está em mim

Falar de família... Vou pensar um pouco. Quais as raízes de minha família? Afinal sou descendente de que raça?
Tudo que sei sobre meus antepassados são pequenos detalhes. Segundo o que andei ouvindo, meu bisavô paterno, Ignácio, pai de minha avó, era um homem muito rico. Não sei se isso é verdade, mas o certo é que cada um de seus sete filhos herdou uma casa de engenho e outra de farinha, além de muitas terras. Na época isso era muito valioso. Era tanta terra que se media em léguas. Disso tenho certeza, pois até hoje minha tia Matilde, prima de meu pai, é dona de uma pequena porção dessas terras e, além disso, eu lembro que me perdia indo da casa dos pais de meu pai para a casa dos pais de minha mãe. E quanto à casa de farinha e ao engenho de cana, eu também vi e cheguei até a brincar entre as moendas. Produzia-se farinha, mel, rapadura, alfenim e cachaça, é claro. Hoje, parte dessas terras pertence à igreja.
Quanto a Ignácio, era um senhor de engenho à moda da época, com escravos e tudo mais. Sabe-se que ele deu a meu avô, como dote, uma bacia cheia de moedas de ouro. Meu avô vivia a reclamar da sorte; dizia que fora criado por sua avó, segundo ele, uma velha chata e rigorosa. Na verdade, a reclamação era apenas uma forma de lamentar o “leite derramado”, pois já o conheci pobre e tendo que trabalhar muito para poder sobreviver. O dote fora gasto com farras.
A respeito dos avós de minha mãe, nada sei. O fato é que ao completar dois anos de idade, sua mãe, Raimunda, morre de parto e ela passa então a ser criada por sua madrinha, que por sinal é irmã da mãe de meu pai. Isso causou certo afastamento de seus parentes, mas, por outro lado, permitiu que eu e meus irmãos desfrutássemos de três avôs e de duas avós.
Nasci na antiga casa grande, herdada pela mãe Isaura, mãe de meu pai. Era por pai e mãe que todos os netos se referiam a nossos avós. O casarão enorme, de pedras e tijolos crus, com uma calçada alta, fora construído por escravos. Como era muito grande, após o casamento, meu pai continuou a morar por lá, onde nasci.
Meu pai se chama Osvaldo e meus tios são: Eduardo (in memoriam), Antônio Cícero, Chagas, Sebastião (in memoriam), Edi, Francisca, Joana e Nilce.
As boas lembranças do casarão são tantas que tenho medo de serem apenas memórias daquilo que gostaria de ter hoje. Era ao redor da mesa grande que todos sentavam, à noite após o jantar, para tomar café torrado e coado, feito em um fogão a lenha e ouvir a Voz do Brasil através de um rádio jaboti da Semp Toshiba.
Por dentro das terras de meus avôs passavam dois riachos que enchiam de vida as plantações de batata doce e o canavial. Foi num desses riachos que aprendi a pescar de facho e facão. Facho é uma espécie de tocha feita com bagaço de cana.
Saíamos à noite com uma tocha na mão e um facão na outra. Adentrávamos no riacho e ficávamos observando os peixes. Quando estes se aproximavam, tentávamos golpeá-los com o facão. Isso era mais uma brincadeira do que uma pescaria de verdade, servia para amedrontar as crianças e “testar” a virilidade dos jovens. Mas era divertido, ah isso era!
Chega! Não vou mais falar sobre minha família. Vou falar apenas de algumas de minhas aventuras de infância e adolescência. Sobre a família eu falo depois.
Nasci em terras “banhadas” por dois riachos, onde se plantava cana-de-açúcar, batata, mandioca e mamona. Criavam-se bodes e algumas cabeças de gado, galinhas caipiras e perus. Tudo que necessitávamos...
As primeiras lembranças são de farturas. Muito mel, rapadura, farinha, batatas, peixes e o baú de madeira que minha avó usava para guardar carne salgada que se encontrava sempre cheio. Ah, ia esquecendo, tinha as frutas, os pés de manga, de mamão e, principalmente, os de graviola, além dos coqueiros que cresciam nas baixadas próximas aos riachos. Fui crescendo e a fartura foi desaparecendo. Quando não dava mais pra viver bem nesse lugar, meu pai resolveu que deveríamos sair em busca de alternativas.
Deixamos tudo para trás e fomos para o Maranhão. Mudamos para uma área da região amazônica. Lá chovia de forma torrencial, provocando enchentes constantes nos igarapés.
A viagem foi uma aventura. Saímos do povoado onde morávamos montados em cavalos e fomos até a cidade de Ipu para pegar o trem para Teresina.
Lembro-me de vários acontecimentos dessa viagem, ou melhor, dessa aventura. Minha irmã Ivone quase fora deixada para trás. O trem já estava de partida quando um de meus tios a entregou para minha mãe pela janela. Chegamos a Teresina em uma tarde calorenta, como são todas as tardes naquela cidade. Vi pela primeira vez uma televisão. Fiquei encantado e muito curioso. Como uma pessoa podia caber ali dentro? Era 1970 e estava passando um jogo da seleção brasileira.
Passamos a tarde toda na Praça Saraiva esperando o ônibus para seguirmos até a cidade de Santa Inez, no Maranhão. Durante a viagem, o ônibus atropelou um boi, causando o maior alvoroço entre as pessoas. Mas enfim, chegamos sem maiores problemas.
Ainda pela manhã, partimos de Santa Inez para um povoado chamado Três Satumbas, não pergunte o porquê desse nome horroroso. Só sei que é um verdadeiro fim de mundo.
Lá fomos morar em uma casa de pau a pique, ou taipa como é conhecida na região, coberta com palhas da palmeira. Tive que fazer de tudo um pouco. Trabalhei na lavoura de arroz, fiz carvão, quebrei coco, pesquei, cacei, vivi muitas aventuras.
Para poder ajudar meus pais, comecei a trabalhar cedo, com sete anos de idade. Aprendi a plantar e a colher arroz, a quebrar coco (extrair a amêndoa) e a fazer carvão com suas cascas. Quando era época de coleta de laranja também estava por lá.
Além de fazer a coleta, eu levava um comboio de jumentos com cargas de laranjas para uma cidade próxima. Era tão pequeno que não conseguia montar sozinho, era necessária a ajuda de um adulto. Só podia descer quando chegasse ao destino. Para voltar, seguia o mesmo ritual.
Minha diversão preferida era subir nos pés de açaí, que por lá se chama juçara, e ficar brincando tal qual um macaco, pulando de uma palmeira a outra. Além do açaí, conheci outra fruta interessante, o bacuri, um pouco semelhante ao cupuaçu, porém com um sabor azedo e aroma marcante.
Para poder me divertir, tinha que ludibriar meus pais, que com cuidado extremo não deixavam que saíssemos para a mata, pois era perigoso devido à existência de animais silvestre como onças pintadas, sucuris e jacarés, por exemplo. Contudo, eu sempre dava um jeitinho de fugir.
Lembro-me como hoje que para poder ir pescar tinha que sair às escondidas. Passava dias e dias colocando azeite de coco babaçu no ferrolho da porta da cozinha para poder abri-la sem que meus pais percebessem. De madrugada eu fugia e deixava um recado com alguma pessoa dizendo que ia pescar. Voltava com um cofo (espécie de cesto feito com a palha do babaçu) cheio de peixes. Minha mãe verificava se estava tudo bem e me punha de castigo para eu não repetir o feito. Era tudo em vão. Na pescaria seguinte eu era o primeiro a me apresentar.
Outra coisa que eu gostava de fazer era ir até o engenho e ficar olhando o trabalho. Era como relembrava o passado recente. Além disso, era a oportunidade que tinha de provar a cachaça ou a rapadura quente, que ali se produzia.
Sempre trabalhei muito, mas sempre fui e sou feliz, pois soube me divertir mesmo nas situações mais adversas.
Uma grande alegria animava todos nas noites de lua cheia. Os adultos sentavam na frente das casas e ficavam contando estórias. Já as crianças ficavam brincando de roda e cantando, enquanto os jovens escapavam para namorar. Parecia um ritual. Para os adultos, o café, a pinga e o cigarro de palha, para as crianças as batatas e o milho assado na brasa da fogueira e, os jovens, sumiam.
Morar no Maranhão parece que foi um castigo para toda a família, pois apesar da fartura que a terra oferecia, padecíamos muito com as doenças silvestres e, além disso, sofri um grave acidente.
Eu era um garoto muito curioso e persistente. Certo dia, resolvi pegar uma carona em um jipe. Até ai nada demais, o problema é que o dono do carro não sabia que eu estava escondido debaixo de umas palhas de palmeira que se encontravam na parte de trás do carro e ao mesmo tempo eu estava apavorado com medo de meu pai descobrir a façanha. Resolvi então descer. Só que não pedi para parar, simplesmente pulei. Acordei, três dias depois, cercado de pessoas. Não me lembrava de nada. Só sei que estava com uma fome tremenda.
Após este acidente, meu pai foi acometido por malária. Como isso, situação tornou a ficar insustentável, não podíamos mais continuar morando ali. Então minha mãe chamou meu pai e proclamou: ou você dá um jeito de sairmos daqui ou eu vou sozinha com meus filhos, você escolhe! O velho baixou a cabeça e resolveu que todos iriam para Teresina, onde já moravam duas irmãs de minha mãe.
Chegamos a Teresina em agosto de 1974. Em março de 1975, com doze anos e meio, eu entro pela primeira vez em uma escola e em março de 1992 sou o orador da turma de Química da Universidade Federal do Piauí. Nesse intervalo, passei um ano e meio sem estudar.
Em Teresina não fui apenas estudante, vivi muitas aventuras e desventuras, mas isso eu conto em uma próxima oportunidade. Estou cansado e bateu a melancolia, por isso estou parando.
Sei que posso parecer um personagem de Monteiro Lobato, mas é tudo verdade e é por isso que sou feliz. Por ter vivido e superado muitas situações adversas.
Tristezas que senti foram muitas. Desilusões, várias, mas baixar a cabeça, jamais. Não sou feliz por aquilo que me falta, mas sim por poder lutar a cada instante por dias melhores e saber que isso é possível.
Como minha história eu mesmo venho construindo, acho que, realmente, minha genealogia está em mim mesmo.